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quarta-feira, 12 de abril de 2023

“Pinturas” …

Os dias podem ser longos e suaves ou curtos e duros, o pior é quando são longos e duros. A outra combinação é apenas para embelezar, um gesto de retórica pura. 
Ainda não vi tudo. Todos os dias tenho uma surpresa. Deveria reconverter os meus interesses para colecionador de surpresas. 
Vi vários trabalhadores de diferentes atividades. Um grupo de “pintores" surgiu a mando da sua entidade. Nada de anormal. Vieram como estavam, “fardados” com as suas roupas de trabalho. Pelo aspeto deveriam trabalhar mesmo, sujos e pintados. Aceitei. Não é a primeira vez que acontece. No grupo de “sujos e pintados” surgiu um que me chamou a atenção. Alto, com a cabeça coberta pelo carapuço do blusão, ar meio-atolambado, sentou-se à minha frente. O quadro era mesmo impressionista. Deixava ver meia dúzia de espaços azulados, a testemunhar as cores primitivas das calças e três borrões limpos e acinzentados no blusão. O resto parecia ter sido pintado à espátula. Um quadro humano, pontilhista, mexia-se à minha frente. Cores diversas, branco, amarelo, vermelho, sobrepunham-se e ondulavam umas sobre as outras à medida que se mexia. Tanta sujidade. Fiquei por momentos na dúvida se era sujidade ou “arte”. Pensei, se tirasse uma foto iria ser um sucesso. Nunca vi tantas e coloridas manchas. Já vi muito. Sou cauteloso e tolerante nestes casos. Faz parte da profissão, mas o efeito que provocou foi de tal ordem que lhe perguntei: — Costuma ir ao médico nesta figura? Olhou-me e respondeu: — O patrão ordenou-nos vir assim! Não comentei, obviamente. Pensei, “Estes patrões não passam de uns espertos”. Enviam os desgraçados como estavam apenas para poder cumprir as obrigações legais, ou seja, ter o tal papelinho que diga que está apto a trabalhar, não vá aparecer o inspetor. Omito o nome da empresa. O que posso dizer é que a “bota bate com a perdigota”, ou seja, perfeita identidade nas cores e no efeito abstrato das mesmas! 
O efeito impressionista não ficou só pela roupa. Após ter tirado as cascas externas, vi tatuagens. As tatuagens eram múltiplas, coloridas, desgarradas e despropositadas a querer demonstrar a essência do seu ser. Por fora estava sujo, mas sob a roupa não ficava atrás. A combinar com este duplo efeito, verdadeiramente impressionista, aliaram-se os odores. Múltiplos, e tão coloridos como as pinturas. Impressionaram, e muito. Aquando do exame neurológico, o pobre do martelo conseguiu uma proeza única, a agitação dos joelhos libertou pequenas nuvens de pó colorido, o direito, branco e o esquerdo, vermelho. Como não podia fugir, tossi. 
Apto. Claro. Apto para trabalhar e para pintar paredes, mas também para ser uma verdadeira tela da vida…  
 

terça-feira, 4 de abril de 2023

“Ouvir em silêncio” …

O senhor entrou alquebrado. Em menos de um minuto explicou-me a razão. A sua mulher morreu há duas semanas. Parei de imediato o meu relógio e aguardei que falasse. Aprendi desde há muito que devo ficar em silêncio perante a dor. A dor grita. A dor quer libertar-se. A única saída é falar, contar, comentar e ter alguém para ouvir. 

- Foi tudo muito rápido. Começou com vómitos, falta de apetite e muito cansaço. Descreveu com pormenores as idas aos médicos, ao hospital, até que um exame revelou ter um cancro no fígado. – Se fosse só no fígado! Também já tinha nos pulmões e sabe-se lá mais aonde. Fui vê-la várias vezes ao hospital, mas não lhe dizia nada. Um dia telefonou-me. Perguntou-me se era a “doença ruim”. Desesperado disse-lhe que sim. No dia seguinte fui até ao hospital. Não sabia o que fazer ou dizer. Disse-me que estava mal. Muito mal. Nessa semana fez anos, cinquenta e quatro anos. Passados quatro dias faleceu. Nesse dia, começou a dizer-me muito baixinho, “Quero morrer. Quero morrer”. Morreu agarrada à minha mão. O seu sofrimento era mais do que visível. Sentia-se de uma forma particular. – Agora sou viúvo! A minha mulher faz-me muita falta, não para cuidar de mim, tomar conta da casa ou fazer a comida. Nada disso. Faz-me muito falta porque era a minha companhia. Não tivemos filhos. Estou só. Agora não sei o que vai ser da minha vida. Pouco ou quase nada lhe disse. Absorvi com muito respeito a sua dor, a ponto de ter necessidade de contar esta história, porque a dor que me provocou precisa de ser também libertada. Já ouvi histórias deste género ao longo da vida. Muitas! No final, agradeceu vivamente por o ter escutado e pediu-me desculpa por me ter incomodado. Reagem sempre da mesma maneira, agradecem e pedem desculpa. 
Ouvir em silêncio ajuda imenso. Silêncio sem tempo é uma porta aberta para eliminar a dor…

quinta-feira, 30 de março de 2023

“Cão feliz” …

 Não sou pretensioso. Penso eu. Só sei que não consigo entender a vida. 
Tentaram convencer-me, desde que comecei a pensar, que a vida era um privilégio divino. A princípio acreditei. Não tive outra alternativa. Tinha entrado há poucos anos neste calhau, perdido no Universo, quando comecei a questionar o mundo. Inicialmente foi um período muito feliz, porque julgava que a alegria, o amor e a bondade existiam como se fossem batatas a murro com bacalhau, inundadas de azeite, associadas a saborosos beijos da minha mãe e as lindas ofertas do Menino Jesus no Natal, ao qual agradecia sempre, beijando-O na igreja da Misericórdia, a cerca de cem metros do local onde nasci, na manhã de Natal. Lentamente, comecei a compreender que havia outras “coisas” de que não gostava e muito menos entendia. Fui inundado de contradições e de dores. Cresci num mundo que não era o que me foi prometido e muito menos desejado. Colecionei um pouco de tudo. Conseguia disfarçar as dores e surpresas com as minhas “invenções” e esperanças de que tudo o que era mau eram coisas passageiras e de pouca importância. Mas não. Não eram. A vida é muito diferente do que “pensei” e “desejei” quando comecei a tentar “ler” o que os adultos pensavam. Foi o início de um novo nascimento, o da minha real existência. 
Não consigo libertar-me do passado. Inicialmente foi um mundo de carinhos e de fantasias. Depois cresci, brinquei, estudei, lutei e “conquistei”, sempre na perspetiva de acreditar no mundo. Hoje, ainda finjo que é possível mudar o mundo. Finjo. Claro que finjo. Não há mal nenhum nisso, porque fingir é a arma dos poetas contra a iniquidade da vida. Ao longo da existência acumulei inúmeras histórias, as quais me ajudam a aguentar o tempo. Tantas, meu Deus, a ponto de exigirem que acredite na Sua existência! Finjo. Não há mal nenhum em fingir. Em contrapartida, procuro ajudar e amar. Adotei animais. O último foi no passado sábado. Num parque de merendas, eu, e uma filha da Baía, encontrámos um cão. Sujo, mas carinhoso. Acabámos por descobrir que estava abandonado. Despoletámos tudo o que havia a fazer, autoridades, responsáveis pelo canil do concelho em questão, até levá-lo à “minha veterinária”. Cumprimos todas as formalidades. Não tinha “chip”. Tomámos as primeiras medidas, banho, desparasitação e medidas mata-pulgas. Ganhou tudo, “cama, roupa lavada”, carinho e alimentação adequada. Fomos “adotados” e mimoseados com muito amor e ternura. Os animais são surpreendentes. No fundo é a própria vida a agradecer. Não sei o que ele pensa, mas também não interessa. O que importa é saber que se sente feliz. Não é que tenhamos feito papel de deuses, mas não deixámos de contribuir para dar algum significado à vida. Ser feliz talvez seja isso, saber que há quem tome conta de nós sem exigir nada em troca.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Loucuras ...

Conversas loucas alimentam e curam. Sabe bem ouvi-las, sabe bem construí-las e também sabe bem desfazê-las logo que apareçam. São diferentes segundo a hora do dia. De manhã são alegres, divertidas, cheias de esperança, cheirosas, impregnadas de perfume e de sobras de amor. À hora do almoço começam a inquietar e a comprometer o girar de um sol esquivo e envergonhado incapaz de se mostrar e que chora num sono depressivo e perturbador. Ao final da tarde, as conversas, esfomeadas, despertam a vontade canina de morder e de esfrangalhar as notícias sem sabor e sem valor. Loucos falam, ufanamente, das suas gloriosas aventuras, atos, palavras e conquistas sem sentido. É uma tristeza ter de ouvir tantas loucuras despropositadas, frias e provocadoras de ansiedade. Não gosto deste tipo de loucuras. São feias e duras. Fujo delas como o diabo da cruz. Não sou fã do diabo, mas aprecio a cruz, sobretudo a minha. Gostava de lhe pregar uma bela e doce loucura erigida aos céus de braços abertos, abertos a todos os loucos sãos deste mundo. Não os encontros. À noite encontrei. Conversa de dois loucos, eu, mais velho, ela, a neta, mais nova. -  Explica-me, tu que sabes de tudo e de todos, onde está a avó? Tenho saudades dela. Nunca esperei tamanha pergunta. Tive de me socorrer de explicações loucas, tão loucas que acabei por acreditar nelas. Depois, perguntei-lhe: - Percebeste o que disse? – Sim. Percebi. Pois, pensei, só através da loucura é que nos entendemos. A loucura alimenta e cura. Sabe tão bem… 

terça-feira, 21 de março de 2023

Primavera ...

A primavera começou ontem à noite. Coisas do calendário, mas hoje é o verdadeiro dia da primavera, 21 de março. Recordo as datas do começo das estações. Era pequeno e fixei-as com carinho. De todas as estações a que mais me seduzia era a primavera. Lembro-me de olhar através da enorme janela da sala de aula. Via o meu pequeno horizonte. Ao fundo corria o rio da minha vida, o delicado e amoroso Dão. Dávamo-nos muito bem. Verdadeiros cúmplices. Lançava-lhe pedras do alto da ponte, quando a atravessava, no frio do inverno, tentando quebrar a fina camada de gelo que se formava nas suas margens à sombra do nascer de um novo dia, pensando, “daqui a uns meses mergulho no teu seio como se fosses o ventre da minha mãe”.  Uma delícia mergulhar nas suas águas, doces, cálidas e cheias de um odor único que continua a perseguir-me. Amar um rio é o mesmo que amar a vida. Nesta altura do ano já as mimosas tinham nascido. A janela semiaberta da sala permitia saborear odores únicos impregnados da beleza do rio. Claro que não dava atenção ao que os professores cantarolavam. Para quê? A sabedoria dos mestres não era capaz de substituir o vigor, o calor e o amor convidativo das suas águas. As minhas memórias eram ainda pequenas, simples e voláteis, mas mesmo assim enchiam a minha pobre alma de beleza. A beleza sempre me seduziu. Apetecia-me ir até ao seu encontro. Estou longe, mas consigo estar perto da alma de um rio que tanta felicidade me deu. Não conhecia o mundo e nem as pessoas.  

Já entrei no inverno da existência. Hoje, senti alegria ao saber que os meus textos, quais orações, reflexões, manifestações de desejos e de apelos, para tentar compreender o sentido da existência, conseguem dar prazer a algumas pessoas. Para mim é uma forma de pintar e desenhar o amor. Viver é isso mesmo, conseguir despertar emoção, alegria, paz e explicar, sem saber a razão, o odor primaveril da vida que um dia me tomou ao olhar e cheirar um quadro pintado por alguém que disse, “O bem e o amor existem. Não te esqueças”! Não. Claro que não me esqueço… 

quarta-feira, 15 de março de 2023

“Um quadro por pintar” …

Um dia lindo, enfeitado com um sol primaveril. O calor comporta-se como se fosse um creme analgésico aplicado a uma alma sofredora. Adoro o azul. As almas felizes devem vestir-se de tecidos pintados com a cor livre e pura de um céu de primavera. Assim conseguem disfarçar a sua existência, vivendo livres. Não sei o que é uma alma, nem tão pouco sei se existem ou não. Mas se acreditar na sua existência tenho de as descrever de acordo com os meus sentimentos. A minha mãe ensinou-me a rezar ao anjo-da-guarda. Lembro-me perfeitamente de acreditar nele. À noite, na minha cama, muito antiga, com um delicado e perfumado colchão de folhelho, rezava com afinco, pedindo-lhe que “guardasse a minha alma de noite e de dia”. Recordo esse período em que acreditava no que a minha mãe me ensinava. Dormia tranquilo e sem medos de acordar no dia seguinte. Hoje não é bem assim. O medo atormenta-me cada vez mais, desfazendo, sem eu compreender, o meu corpo e a minha alma, essa coisa mal compreendida, mas, confesso, linda e cheia de poesia. 

Continuo a viver. Sou obrigado a isso, ou talvez não. Esbarro frequentemente com muitos quadros e cenas do quotidiano. Às vezes registo-os. Hoje, ao saborear o calor da primavera de mais um dia da minha vida, ouvi sons lindos, folhas a bocejar, águas livres a despertar, aves a serem corridas pela alegria avassaladora de um cão, capaz de misturar a liberdade de brincar e de caçar e a visão de um velho mais novo do que eu, sentado num banco de jardim, escondido nos seus pensamentos, estranhos, tristes e obscuros, indiferente à provocação de um delicado e amoroso pardal que saltitava em seu redor. Adoro pardais. Tenho muitas razões para isso. Continuei na minha marcha programada quando fui despertado pelo toque singelo do meio-dia oriundo de uma capela no alto do monte. Adoro as badaladas dos sinos por muitas razões. São toques de vida, de amor, de morte, de alegria, de tristeza, do tempo e do seu significado. Ainda as ouço. Contei as doze. Conheço a sua linguagem. Ao subir a escadaria “embrulhei-me” com um inseto, um bicho-de-conta. Dei-lhe prioridade de passagem. Senti que era vida, simples, sem desejos, sem medos e confiante da sua existência. Não se defendeu e eu não o ataquei. Era o que mais faltava. Cada um deve ir à sua vida. Para quê? Não sei e nem me interessa…

sexta-feira, 10 de março de 2023

"Almas telúricas" ...

Descobri que escrever depois do almoço é uma forma de saborear uma doce sobremesa. Como não “devo” comer doces, julgo ser uma forma intelectual de satisfazer o estômago e libertar a alma imbuída dos segredos de um agradável e espirituoso vinho. Ainda bem que nasci nesta parte do mundo. Assim consigo enganar muitas pessoas, inclusive o Filho de Deus que libertou ou liberta o mundo através do seu “sangue”. E se acompanhar estes pensamentos no final da refeição com um delicado e suave “alimento do espírito”, caso de um bom charuto, tanto melhor. Violo as regras de saúde, mas liberto-me, momentaneamente, da prisão da vida. É isso mesmo, não nasci para viver numa prisão, seja ela qual for, anseio pela liberdade total, talvez a do esquecimento, de mim próprio, obviamente. Sou invadido por emoções, lembranças, desejos, medos, alegrias, areias grossas de um rio e sombras da noite perdidas nos braços do amor, mas também cheio de esperança em me libertar um dia da alegoria da vida, parida com dor e alimentada com muito amor. Os meus amigos vão-se libertando, quase sempre com muita dor. Não lhes digo nada. Também não me conseguiam ouvir. Se pudessem sentir, sentar-se-iam a meu lado, bebiam um copo de vinho, fumavam um charuto e olhariam em silêncio, com a alma impregnada de paz, o céu que nos acobertou no dia em que nascemos. Julgo que sim. Recordo de um escritor, com o qual me cruzei algumas vezes, trocando apenas “bom-dia”, nada mais do que isso, embora tenha lido toda a sua obra, que disse, “a alma procura, desesperadamente, libertar-se no local onde nasceu”. Não sendo religioso, peço a Deus que considere o local da morte de alguém como sendo o mesmo aquando do aparecimento neste mundo. Não posso fazer mais. Mas penso vivamente nisso. Afinal de contas as almas são telúricas…

quarta-feira, 8 de março de 2023

“Deus mulher” …

Conheci ao longo da vida muitas pessoas. Imensas. Tantas que acabaram por dar sentido à minha vida, que é como quem diz, não entendo e nunca entenderei por que razão existo. Queria deixar Deus de lado por uma mera questão de respeito. Não me interessa se existe ou não, o que pensa ou o que deixa de pensar. Sou um fragmento do tempo perdido no imenso universo. Sou capaz de pensar, de sonhar e, sobretudo, sou alvo de penar como qualquer um. Faço o que posso, bem ou mal não interessa. Sei apenas que desejo, ardentemente, ser objeto da mais bela e enigmática esperança, poder um dia dormir sem saber nos braços da minha mãe. Curioso. É a mais bela lembrança que transporto, um agradável e húmido calor durante um tempo que fez inveja à vida do próprio Universo, agora com letra grande, já que não sou mais do que um pequeno ser. Não entendo muitas coisas, mas consigo sentir muitas outras. Não sou capaz de as desenhar, de as cantar, de as louvar e nem mesmo de as sonhar. Vegeto docilmente num mundo desconhecido que me prometeram um dia ser o paraíso.  
Não faz mal. O que eu queria mesmo é ser um vadio da vida. Acabei por ser médico, mas também não há grande diferença entre ser médico ou ser vadio. Nós, médicos, conhecemos almas, partilhamos os mesmos anseios e destinos, mas desejamos sempre regressar ao verdadeiro paraíso, o ventre quente, suave e doce de uma mãe. O Universo nunca sentiu isso. Talvez seja a minha grande vantagem, conseguir despertar inveja a um Deus que nunca passou pelo ventre de uma mulher. Hoje é o Dia da Mulher. “Deus mulher” seria diferente. Diferente e melhor, e sem dúvida muito mais saboroso...  

domingo, 26 de fevereiro de 2023

“Mistérios” …

O dia acabou mais cedo do que esperava o que fez com que ficasse com o meu ritmo laboral perfeitamente destrambelhado. Não estava à espera. Pensei, vou fazer aquilo que mais gosto, vou sair, vou escrever num sítio prazenteiro, beber uma bebida quente, mas vacilei. Resultado, acabei por andar às aranhas. Ainda fui ver se havia uma mesa num espaço agradável ao pé de casa. Sem esperança, atalhei por um beco, desconfiado de que àquela hora os aposentados já o teriam tomado de assalto. Ao aproximar-me vi, nitidamente, através da larga parede de vidro, olhares de quem não sabe o que fazer, olhares secos, pobres, alguns meio patetas, mas que não se cansavam de escrutinar quem passava. Ainda bem que não havia lugar. Caminhei de braço dado com o frio que, desesperadamente, queria guilhotinar o meu pescoço. Bem tentou, mas eu não deixei. Entrei na livraria, havia uma mesa vaga. Sentei-me. Tentei escrevinhar, não consegui. Fiquei durante algum tempo a fingir que fazia nem sei o quê. Bebi um café. Olhei em redor e entretive-me a ver as pessoas, as suas caras, os seus maneios, as diferentes formas de beber e de comer, os diferentes bamboleios das ancas, e perguntar por que razão é que põem a tocar uma música capaz de irritar a sensibilidade de quem procura um espaço para ler, escrever, namorar, conversar ou meditar. Atribuí a culpa do meu insucesso de final de tarde à qualidade da música, que mais parecia um vaporizador mata-moscas do que outra coisa. Levantei-me e deambulei entre as mesas e as estantes com livros. Há muito que não entrava naquele espaço. Tantos livros, sedutores. Fiquei subitamente surdo, não ouvia a música. Comecei a entristecer. Queria ler aquilo tudo. Que loucura, pensei. Vou comprar um. Qual? Para quê? Não leio a maior parte dos livros, adio eternamente o momento das suas carícias e reflexões. Andam lá por casa aos pontapés, debaixo e em cima de tudo o que se possa imaginar. Nem vale a pena descrever onde e como amontoo os livros. Tenho esperança de que um dia consiga um grande feito, lê-los. Claro que não vou conseguir. Tantas obras. Bons títulos. Excelentes escritores. Evito tocar-lhes, porque às vezes tenho medo de ser contagiado. Quando abro um livro é habitual ver delicados farrapos da alma do escritor, como se fossem flocos de neve a cair em redor, criando um belo mundo de fantasia. Não lhes toquei. Sabia que ao primeiro toque acabaria por ser aprisionado. Resisti até ver o nome de um autor. Não me recordo como apareceu na minha mão. Tentei evitar tocar-lhe, mas não consegui. Comecei a ler algumas passagens e, subitamente, já estava noutro mundo, via as pessoas, sabia como pensavam e o que queriam. Sabia a cor das suas almas, o calor dos seus pensamentos, os seus desejos, temores, tudo me parecia ser tão real que eu próprio duvidei quem era e onde estava. Um velho autor, um dos meus preferidos, escritor maldito. Atraem-me os escritores malditos, particularmente este, que viveu e sofreu muito, fome, fome de verdade, e que acabou por ser internado numa instituição psiquiátrica onde morreu na mais completa pobreza e repúdio social. Nasceu pobre, viveu grande parte da vida pobre, morreu pobre, mas consegue uma proeza única, enriquecer quem o lê. Espero que tenha passado o resto dos seus dias na mais perfeita e tranquila loucura.

Tenho-o aqui, a meu lado. Já o abri novamente e sinto belos flocos de neve a inundar-me. Valeu a pena o dia de trabalho ter acabado mais cedo. Vou lê-lo, melhor, vou saboreá-lo.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Morte. Um testemunho…

Falar da morte pode parecer um pouco bizarro. De um modo geral fugimos ou escondemos este tema. Morte é escuridão, morte é tristeza, morte é ausência de cor. Mas há ocasiões em que a morte é sinónimo de paz quando acompanhada de um belo sorriso, fazendo com que as cores ganhem vida.   

- Vim agradecer-lhe. Calei-me. Recordei as três conversas que tivemos há alguns meses. - Sabe, graças a si consegui viver com tranquilidade os últimos meses de vida do meu pai. - Faleceu? - Sim, tal como o senhor doutor tinha prognosticado. - Então, não chegou a comemorar os sessenta anos. Era por estes dias, não era? - Era, mas não importa. O seu sorriso emanava uma tranquilidade de espírito e vontade de viver como nunca vi. - Quando ia ver o meu pai lembrava-me sempre das suas palavras. Sorria-lhe. Tocava-lhe. Gostava imenso que lhe massajasse as costas. Tinha muitas dores, mas ficava mais calmo. Falávamos através do calor dos corpos e da troca de olhares. Quando saía do hospital, ficava sempre com a sensação de que poderia ser a última vez. Sabia que não havia esperança. O senhor doutor ajudou-me a encarar a morte de uma forma muito especial.  

O seu sorriso, que é mesmo belo, testemunhava o que estava a sentir. Depois tentei rememorar o que lhe tinha dito e cheguei à conclusão de que não disse nada de especial. Claro que já "vivenciei" a morte muitas vezes. Não sei se foi a minha experiência profissional ou a familiar que a influenciaram. Talvez tenham sido as duas, mas a familiar pode tê-la marcado de forma particular. Creio que sim. O que eu sei é que uma conversa sobre a morte se pode transformar num diálogo de amor e num poema de alegria.   

- Levantou-se, abraçou-me com emoção, dizendo em voz baixa: - Não sei o que lhe dizer mais. Consegui, graças a si, viver uma experiência única, a agonia e morte do meu pai com dignidade e muito amor... 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Conversas...

 Recordo de tempos idos. A memória alimenta-se de recordações. Obriga-me mesmo a reviver velhas histórias como se acabasse de as viver.

Adorava visitar velhos locais, próximos no espaço e remotos no tempo. Aos domingos mergulhava numa casa de pasto onde convergiam pessoas do povo; talvez fosse a sua extravagância semanal. Para mim não era extravagância, era mesmo uma necessidade, beber e comer num meio rico, popular, onde podia ainda auscultar o sentido das pessoas, deliciar-me com as suas conversas cruzadas e aprender a ver o mundo de forma diferente. Adorava o período em que os emigrantes regressavam às origens. Muitos deles, tendo vivido mais de quarenta anos em França, não perderam a forma de falar das suas terras, embora entremeada pelo hipotético ganho cultural adquirido lá fora, com o qual se convencem que sabem mais e têm soluções para tudo.

O “franciú” comia e bebia que nem um alarve. Meteu conversa com um casal, também, de emigrantes.

- Donde são?

- Ah! Eu conheço. Conhecem fulano e sicrano?

O casal disse que sim. A partir daqui, entre duas garfadas e um copo de vinho avidamente emborcado de uma só vez, começaram a desfilar histórias atrás de histórias e formas de solucionar os problemas do país, da décima, dos carros, das portagens, como legalizar e não legalizar carros, um longo e interessante arrazoado em que ouvi de tudo.

- Vejam lá agora como são as coisas. O melhor é não ter nada. Então não é que agora a décima é para triplicar a pagar!

- Pois é, "intigamente" era melhor. Dizia o vizinho.

- É como os carros, custa-me mais "pró" legalizar do que aquilo que pagam.

- Sabe minha senhora. - Minha senhora não! A senhora é do seu marido, não é minha.

- Peço-lhe desculpa, mas são uns chulos de merda, com licença da palavra. A conversa continuou à volta de inúmeros assuntos, em que a forma de pronunciar certas palavras passaram a ser rainhas e senhoras, onde "buber, abaxou, câmbra, ós pois, ar congelado" e muitas outras eram pronunciadas da forma mais natural.

O casal despediu-se e o alarve continuou a mastigar e a beber. Em frente, à distância de duas mesas, um senhor de idade aproveitou o silêncio da sala de pasto para entrar na conversa.

- Olha lá, não me estás a conhecer? Sou o Zé Manel tipógrafo que andava sempre a assobiar e tinha os queixos afiados. Não te estás a lembrar de mim? Eu fazia os bailes pelas aldeias. Eu quando entrei disse para mim, eu "conheci" esta cara.

O outro olhava-o e acenou com a cabeça. Depois a conversa reiniciou-se com o parceiro, explicando que esteve em Lisboa 48 anos, enquanto o outro dizia que já andava há mais de quarenta em França.

- Estás com ar diferente.

- A idade muda muito as pessoas. Há dias nem reconheci o filho do "condogueiro" e, ainda há pouco, vi uma senhora que julgava que era a mulher do gago. Pus-me a reinar com ela e tive de lhe pedir desculpa.

- Comigo passou-se uma coisa parecida. Foi na Amadora. Vi um gajo de bicicleta e pensei que era um conhecido, um tipo muito vaidoso. Deixei-o ir ao "ralenti" e "amandei-lhe" um murro nas costas. - É pá! Não era o gajo. Disse ao tipo: - Desculpe, julgava que era o Manel Marques. - Não faz mal. Depois conversámos um pouco. E não é que ele também conhecia o Manel Marques? - Segunda-feira vou estar com ele e devolvo-lhe o murro. - Ah, Ah! Coisas. Ria-se abundantemente e sem o estorvo da placa.

O outro ouvia-o, mas não falava porque empanturrava a boca de comida.

- Comi que nem uma maravilha. Comi à bruta!

Entretanto o outro rematava:

- Padre sou eu que comi uma sardinha!

Aproveitou o arroto para mudar de conversa e dar seguimento à conversa.

- A gente está sem rei e sem roque. Dizem que fizeram uma democracia, mas não, o que fizeram foi uma anarquia. E para explicar a sua opinião socorreu-se de vários exemplos entre os quais um, que nunca passou pela minha cabeça.

- Vê lá que até para as filhas conhecerem o corpo de um homem tinham de tomar banho com o pai. Isto é que uma liberdade! A liberdade tem limites.

Era hora do almoço, os copos que ia contando não era por aí além, mas prometia.

A tarde daquele domingo foi de ócio, as adegas abriram as portas para arejar o mofo, as tascas de convívio engalanaram-se com boas buchas, e, até ao jantar, pelo menos, aqueles fígados devem ter tido um trabalho do caraças, enquanto os seus cérebros divagavam pelos acontecimentos do país, pondo toda a sua criatividade ao dispor da gente.

Tascas! Santuários da vida do português genuíno. Eu julgo que continuo a ser…

sábado, 18 de fevereiro de 2023

O tolo

Boné na cabeça, mãos atrás das costas, cabeça de lado, em constante movimento e sempre a olhar para a rua como se estivesse à espera de alguém. O tolo, que não via há alguns anos, estava no mesmo sítio, em frente da porta do cemitério. Viu-me e comentou sem olhar: - A Marisa não me vem buscar. E são horas do almoço. O relógio está a trabalhar. Às tantas só vou almoçar à noite. Mas hoje é dia de Natal ou quê? Entre as múltiplas frases olhava para o pulso como a querer confirmar o tempo.  

- Esteve a trabalhar? Perguntei. – Estive. Estive à espera da Marisa. Nunca mais me vem buscar para comer. – E quem é a Marisa? – É a minha colega. Trabalha neste escritório aqui. – Muito bem. Já agora pode dizer-me o que é que o senhor faz? – Eu sou chefe. – Chefe de quê? – Chefe de primeira. Ainda cuspo muito para comer. A que horas se almoça hoje? São horas. Ia respondendo às minhas perguntas sempre de costas voltadas, olhando para o lado esquerdo à espera de que alguém chegasse. Sentado à sombra de uma delicada árvore deixei-me ir naquele estranho diálogo. – O senhor trabalha aqui há muito tempo? – Quinze dias, só! – E já é chefe? – Para o ordenado que tenho ainda é pouco. – Mas diga-me lá uma coisa. O senhor é chefe dos coveiros? Não respondeu. Talvez não tivesse ouvido, - Há muitos coveiros? – Há. – Quantos? – Quatro. – Afinal há quanto tempo está aqui? – Há muito. Há vinte anos. Sorri e comecei a recordar a conversa que tivemos há alguns anos em que o tempo era a coisa mais elástica e volúvel que alguma vez vi. Tinha aspeto limpo e cuidado. Quem o trata fá-lo com carinho e atenção. Continuei a conversar com ele através das suas costas. Nunca me olhou de frente. Sempre à coca da chegada da Marisa. – Já trabalhou hoje? – Estou à espera da Marisa para comer. Eu tenho de comer. Se uma pessoa não come morre. Vai para debaixo da terra. E não é que a gaja demora! Com catano. São quase duas horas e ela não vem. Para a próxima não a deixo ir a lugar nenhum. Primeiro come-se, depois trabalha-se. – Ela foi fazer o quê? -  Se calhar foi às compras. – A esta hora está quase tudo fechado. São horas de almoço. – Ela já devia cá estar. Eu como às três horas. Depois as horas fazem-se tarde de mais. – A que horas é que sai? – Saio às duas. – Mas são uma e meia. Olhou para o relógio e ripostou: - São duas e meia, são. – Como é que se chama? – José Manuel da S. R. – Mora aqui perto? – Moro na Presa, antes de chegar à capela do Morais, lá para cima. Eu nem sei se a mulher dele já morreu ou não. Ainda há tempo a vi. 

A conversa continuou sempre em redor da vinda ou não da Marisa. – Ela esqueceu-se de que tenho de comer. São três horas e daqui a pouco são três e vinte e ela sem vir. Olhava constantemente para o relógio cujos ponteiros, se trabalhassem melhor do que a sua cabeça, deveriam estar na uma e quarenta. – Ora, a gaja já cá devia estar. Ela e a outra. Eu como às duas horas, duas e meia, três horas, as horas que eu quiser. E ela demora-se. – Onde é que vai comer? – Aqui, no depósito. – Onde?! – O Nélson já comeu e há muito tempo. Eu é que não. – Quem é o Nélson? – É o coveiro cá disto. – Já agora o senhor quanto ganha por mês? – Dois contos e tal. Mas isso é pouco! – Já pediu aumento? – Há quanto tempo! Pedi à Marisa. Mas a Marisa hoje está demorada. Entretanto, rapa do bolso um longo desdobrável e pôs-se a lê-lo. – Que lista tão grande! O que é isso? – São as horas extraordinárias que ela me deve. – Desde quando? – Desde fevereiro. – Ela já não volta. Disse-lhe. Não respondeu. Permanecendo sempre de costas olhava atentamente à espera do que não tem que aparecer. O tolo, no seu discurso enigmático, ia construindo o seu mundo virtual, uma espécie de Pokémon desejoso de ser apanhado por alguém que pudesse ajudar a treinar a sua pobre mente. Repeti: - Ela hoje não vem. – Vem, mas só às quatro horas, quatro e meia. Já são quase. – Mas que horas são? Olhou para o relógio e disse: - São quase três horas. – Três ou duas? – Duas. – Pois são. Foi então que me recordei da frase do tolo com a qual definiu, e bem, o trabalho, “cuspir muito para comer”.  

Foi o que eu fiz!  

Aprendemos sempre com alguém, até com um tolo.

“Biscoitos, pijamas e petingada” …

Manhã nublada e um pouco adocicada. O cheiro do mar leva-me sempre para o mundo da fantasia, mas o dever obrigou-me a cumprir o horário. Portões abertos. Uma senhora de idade, a sorrir, aproximou-se. Perguntei-lhe se me podia ajudar. Sorriu. A meu pedido identificou-se como a diretora da instituição. Fiquei um pouco envergonhado. Não reconheci a irmã. Pedi-lhe desculpa. Muito delicadamente perguntou-me se não queria tomar um café. – Claro que sim, irmã. Levou-me até uma pequena sala onde tirou um café ao mesmo tempo que destapava uma caixa cheia de biscoitos. – Senhor doutor, coma se faz favor. Fiz ontem à noite. Não disse que eram para mim, mas eu entendi perfeitamente que foi essa a intenção. Tirei apenas um bocado, dizendo ao mesmo tempo que a minha condição não permitia comer mais. Sorriu. Confesso que me soube bem, a ponto de lhe dizer: - Irmã. Posso roubar um para levar? – Senhor doutor. Roubar, não! No final das consultas vai levar biscoitos.

As consultas correram muito bem, mas de uma forma original. A primeira funcionária, sorridente, apresentou-se vestida com uma indumentária inusitada. Pijama quente e vistoso. Viu que fiquei intrigado com a vestimenta. Foi então que me explicou que era o “dia do pijama”. Todas as funcionárias apareceram na consulta vestidas com confortáveis pijamas de todas as cores e feitios. Quase que me apeteceu usar também um. No final da manhã, a irmã veio despedir-se e entregou-me um saco com todos os biscoitos que estavam na caixa. Senti logo que ia sair asneira. E saiu. Enfim, também tenho direito a fazer algumas, neste caso foi “abençoada”.

Terminei cedo, o que me permitiu passear um pouco pela cidade, relembrando velhos tempos.
A minha intenção não foi recordar, embora sentisse a presença do passado a meu lado. Um estranho silêncio envolvia o presente. Não quis ouvi-lo. Apenas quis fazer horas para o almoço num restaurante conhecido. Sentei-me e olhei para o mar. Estava um pouco enraivecido. Assim que se aproximou o meio-dia desloquei-me até o velho espaço de restauração. Será que está aberto? Pensei. Sim, estava. Ao entrar, duas senhoras, uma delas a dona, cavaqueavam. Olhou-me e reconheceu-me através de um suave sorriso. Indicou-me a mesa. A funcionária, uma jovem, nomeou os dois pratos. Escolhi a “petingada”. Fui generosamente servido. Não apareceu mais ninguém. No final a dona aproximou-se. Foi então que lhe disse: - Tinha-lhe dito que quando viesse passaria por aqui.  

A história é simples de contar. O dono, que era o seu pai, um bom conversador, tratou-me sempre com enorme simpatia. Na última vez perguntei pelo patrão. A jovem empregada estremeceu bruscamente. Ficou tensa. Após uns breves segundos, em que demorou a dissipar a surpresa, disse: - Mas o senhor Zé faleceu! Como se eu tivesse de saber. Depois contou-me tudo o que se tinha passado. A minha curiosidade levou-me a perguntar-lhe o que iria acontecer ao restaurante. “A filha vai tomar conta”. Pedi-lhe para a chamar. Manifestei-lhe as minhas condolências e contei algumas peripécias passadas com o pai. No final disse-lhe que sempre que fosse à cidade iria almoçar ali, não só porque a comida era boa, mas em homenagem ao pai. O único sítio, onde nunca escolhia a refeição. – Então, veio almoçar, não é verdade? Faça o favor de se sentar. Vou arranjar algo de especial. O senhor não vai arrepender-se. No final, dizia sempre: - Tinha ou não razão? Claro que tinha. Sempre. - Está a ver? Prometi e aqui estou. Sorriu, abraçou-me e deixou cair duas lágrimas.

 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Não me recordo do seu nome…

Vivi na estação de comboios, quase que no meio das linhas e paredes meias com a fábrica de serração. Lembro-me de muitos carregadores. Eram homens muito duros que utilizavam o corpo para mudar o mundo e ganhar algum dinheiro para comer, beber e viver. Viver? Fingiam. Vestiam de azul-sujo e frio, longe do belo azul do céu sob o qual trabalhavam desde a aurora invadindo a noite sem dar conta da negridão que sobre eles caía. Brutos, capazes de levar no lombo cargas impensáveis, subindo e descendo estrados que chiavam ao peso dos seus pés, muitas vezes desnudados. Os sacos de serapilheira eram a única armadura dos seus dorsos e cabeça. Mal falavam. Nos pobres e raros intervalos faziam as suas refeições. Navalha, boroas, chouriças e vinho. Muito vinho complementado com vários copos de três aviados na tasca à laia de sobremesa. O suor e o odor do vinho encharcavam a atmosfera misturando-se com os aromas da serradura, do trigo, do querosene, do cheiro dos animais, do carbureto e do tabaco mais ordinário que já fumei até hoje, os Kentucky. Estranha e complexa mistura que à noite era engolida pelo fumo das fogueiras, à volta das quais descansavam os corpos, libertando as suas almas cheias de medos, pecados e tentações. A embriaguez reinava. Era o único prazer a que tinham direito. Se é que poderia ser considerado como tal. Gente simples, dura e bruta na sua mais genuína expressão. Conheci alguns. Muitos, mesmo. Nos dias de folga iam ter com a família ou descansavam. Alguns dormiam no dormitório em camas móveis que se abriam como se fossem triângulos acabados de desenhar. Um deles tinha uma barca lá para as bandas de Treixedo. Fiz algumas vezes, com o meu pai, o percurso de comboio entre as duas estações. Uma viagem de cerca de seis quilómetros, se tanto. Até poderíamos ir à pé. Depois levava-nos na sua barca usando uma longa vara. Conhecia as profundezas do rio. Não usava remos. Passeei algumas vezes naquele troço aos domingos com enorme satisfação. Tinha um sorriso delicado. Muito suave para a brutalidade típica dos carregadores. O nosso lanche era sempre partilhado e ajudava-me a molhar os pés no belo rio Dão nas tardes quentes de verão. Não me recordo do seu nome. Se o meu pai fosse vivo dispararia logo como se chamava e obrigava-me a passar pela vergonha, dizendo, “Esqueceste do seu nome? Era teu amigo e cuidava tão bem de ti!”. Um dia, durante a realização de manobras na estação, morreu debaixo da máquina a vapor muito perto da minha casa. Nunca mais andei na sua bela barca ancorada no rio Dão perto da estação de Treixedo. 

Não me recordo do seu nome, mas não esqueço o seu sorriso, cuidados, a velha barca e o suave e enigmático odor de um rio que teima em correr sem parar no meu coração como se fosse o mais puro e nobre sangue da vida… 

sábado, 21 de janeiro de 2023

“São Sebastião” …

Presumo que já tive a oportunidade de explicar a razão de gostar do São Sebastião, capitão da guarda pretoriana de Diocleciano, imperador romano. Sendo cristão, Sebastião era benévolo com os crentes, facto que o levou a ser considerado como traidor e condenado à morte por flechas. Lançado ao Tibre acabou por ser resgatado por Irene (nome tão lindo, nome de uma tia querida com voz de anjo) que mais tarde foi elevada aos altares. Novamente presente perante o imperador, acabou por ser executado através de espancamento e o seu corpo lançado nos esgotos de Roma.
Foi objeto de várias obras, uma delas li em pequeno, Fabíola, do cardeal Nicholas Wiseman. Nunca mais esqueci a belíssima capa do livro. Também foi objeto de outros autores de forma sedutora e encantadora. 
Desde pequeno que sou fascinado pela sua imagem, tronco nu, amarrado a um tronco e cravejado de flechas. 
Portugal tem uma característica religiosa que considero única. Em todas as procissões, sejam elas em honra de quem for, aparece sempre um São Sebastião. Vai a todas! Está presente em muitas igrejas, e quanto a capelas, upa, upa, é difícil, penso eu, encontrar um santo com tantas. São Sebastião pode mesmo ser considerado como o campeão das capelas em Portugal. Presumo que o culto a São Sebastião tenha a ver com a peste, a fome e a guerra, a tríade destruidora da humanidade. Na falta de melhor, São Sebastião tornou-se no santo protetor das pestilências humanas. É tão popular que até tivemos um rei chamado Sebastião (por ter nascido neste dia) que tudo fez para o honrar. Lisboa tinha sido assolada em 1569 pela peste. O rei mandou erigir um templo junto à margem do Tejo e até o papa lhe enviou de Roma uma das setas com que o santo foi martirizado.
Muito mais havia a contar a propósito deste cristão que tentou converter Diocleciano.
No seu dia, 20 de janeiro, costumava calcorrear alguns sítios onde lhe prestam homenagem. Lembro-me de um ano ter passado por eles. Fiquei triste, nem uma festa, nem uma procissão, nem uma venda, nem música ao estilo de Quim Barreiros, nem um taberneiro, nada. Ainda pensei: - Ó Sebastião! Será que as pessoas estão a esquecer-te? Não me respondeu.
Na altura “precisava” de dois santos para juntar aos muitos que andam por aqui. Faltavam-me um São Brás e um São Sebastião. Agora já os tenho. O São Brás por causa da minha mãe, e o facto de ter nascido no seu dia! As voltas que dei para ir buscá-lo à Guarda. Tantos anos à minha espera! Quanto ao Sebastião, foi em Frankfurt que o adquiri. O antiquário quase que me o ofereceu. - Sabe? É indo-português. Adquiri-o em Goa. Como o senhor é português é perfeitamente legítimo que o leve para o seu país. Venda simbólica. Presumo que não vou adquirir mais nenhum santo. Este Sebastião, tosco, popular, foi criado pelas mãos de um santeiro de Goa nos finais do século XIX.
Lembrei-me dele. Hoje, à hora do almoço, telefonei para casa e pedi para ir ao jardim ver se havia uma flor. Havia apenas um lindo botão de rosa. Agora está a seus pés no meu quarto. Bom, tenho que agradecer ao São Sebastião. De facto, mais tarde ou mais cedo, acabo sempre por conseguir o que desejo. Estranho? Um pouco. Mas foi sempre assim.
Escrevinhei este texto ao som de uma chuva miudinha e de um largo sorriso cheio de sol que, inesperadamente, surgiu enquanto almoçava na esplanada de um restaurante. Adoro o sorriso de São Sebastião.
Foi hoje, 20 de janeiro de 2023.
Agora, termino a minha refeição bebendo um copo de vinho à sua memória e história.
-  À tua, Sebastião!

sábado, 5 de novembro de 2022

Clara

Adoro escrever. Preciso de sonhar e de dar largas à imaginação mesmo na mais estranha solidão. Vivo sem compreender a vida. Sou um saco de confissões, de desejos, de medos, de terrores, de amores, de ilusões, de doces e de alegrias. Mesmo num dia banal encontro sempre motivos de reflexão. Os seres humanos são verdadeiros exemplos de saber, de emoções, de solidariedade e de esperanças a par de muita dor, do sofrimento da alma e até da morte anunciada.
A senhora, com mais de quarenta anos, pediu-me um esclarecimento. Tinha tido recentemente uma filha e “perdeu” a visão. – Acha que foi da gravidez? – Foi de repente? – Foi. – Mas é só para o perto, não é? – Sim, porque ao longe continuo a ver bem. Sorri. Olhei para os exames e comprovei défice de visão apenas para o perto. Nada de especial. Depois expliquei-lhe que era natural a diminuição da acuidade visual com a idade. Uma mera questão ótica, na medida em que o “formato” do olho se altera com a idade, tal como acontece com o corpo. Tentei explicar que o facto de ter estado grávida, e as alterações decorrentes da mesma, poderão ter tido alguma responsabilidade no assunto, mas que não era sinónimo de gravidade, além de que a diminuição da visão ao perto tem a característica de ser quase abrupta. - A idade explica o assunto. – Mas há pessoas que são muito mais velhas do que eu e continuam a ver sem problemas. – Pois! Cada caso é um caso. Às tantas muitas dessas pessoas não “precisam” dos olhos para ver ao perto e nem dão conta disso. Sorri. – Não é o meu caso. Retornei ao tema da gravidez. – É o primeiro filho? – Sim. Nem imagina o “esforço” que tive para engravidar. Mais de dez anos em tentativas e tratamentos. Sorri e dei-lhe os parabéns. Logo de seguida perguntei o nome. Teve uma menina. – Como se chama a sua menina? – Clara. – Lindo nome. Parabéns. Um nome pouco frequente nos dias de hoje. Antigamente ainda o usavam, depois parece que se “esqueceram”. Digo isto, porque habitualmente pergunto às senhoras os nomes dos filhos. Uma atitude que considero simpática e que é bem vista pelas trabalhadoras. – Ainda há pouco, no decurso de um exame a uma senhora brasileira, que veio para Portugal com a família, disse-me que a sua  menina também se chama Clara. Dei-lhe também os meus parabéns, tanto mais que os brasileiros são useiros em nomes por vezes muito peculiares. Sorriu. – Olhe, senhor doutor. Nomes tínhamos nós há muitos anos, fosse rapaz ou rapariga. O nosso sonho era um dia usá-los. Nomes nunca nos faltaram. 
Felicitei-a novamente. Desejei-lhe saúde, bom trabalho e as maiores felicidades para a Clara. – Olhe. Não sei se sabe, mas Santa Clara, além de ser padroeira da fala, também é padroeira das doenças visuais. – Ai é? – Sim. Não é só a Santa Luzia. Sorriu e saiu embrulhada  num pouco de felicidade. 
Quando saiu, recordei uma conversa tida há muitos anos com a minha avó. Era muito pequeno. Contou-me que o meu pai falava muito pouco ou quase nada até aos cinco anos. Tiveram que fazer uma promessa à Santa Clara para lhe dar a fala. O que é certo é que a partir daquela altura começou a falar quase ininterruptamente durante o resto da vida, até quase aos noventa e um anos! O meu pai nunca estava calado, apenas quando dormia. Às vezes dizia-lhe: -  A avó fez uma grande asneira, nunca devia ter feito a promessa de levar de pedir à Santa Clara a fala para ti. Sorria e voltava a falar como se não ouvisse. 
 
 
 

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

“Conserva o teu sorriso” …

Acabei a manhã de trabalho muito cedo. Apesar da agressividade bendita da chuva, que quer fecundar a terra, fui dar uma volta. Entrei na loja de antiguidades/velharias. A senhora deve ter-me reconhecido e apontou logo para a zona dos livros, que estava praticamente inacessível. Fez os possíveis para que eu pudesse tocar-lhes. Não foi nada fácil, mas mesmo assim consegui tocar nalguns e em poucos minutos já tinha coligido cinco. Uma mania como outra qualquer. Achei curioso a explicação. “Muitos destes livros foram dados pelos donos. Como já não tinham espaço, ofertaram-nos. Agora vendemos a um euro”. Pensei que deveriam ser tolos. Descartar livros é como sujar a alma de lama. Posso descartar-me de muitas coisas, menos de arte e de livros. Não disse nada, sorri apenas. Estive tentado a trazer muitos, mas os livros pesam. Neste caso pesam literalmente, mas na carteira não. 

Fui até ao restaurante habitual, muito tempo antes da hora. Sentei-me na esplanada. O dono surgiu. Vinha das compras. - Então, que é que traz aí? - Douradas e estas sardinhas. Mostrou-me. - Opto pelas sardinhas. - Quatro ou cinco? - O senhor é que sabe. Sorrimos em uníssono. Já sabia que ia demorar, obviamente. Entretanto, comecei a folhear os livros. Alguns eram virgens. Há décadas que estavam embrulhados em plástico. Nunca ninguém os tinha aberto. Três eram de autores portugueses, Aquilino, Camilo e Trindade Coelho. Um outro, era uma coletânea brasileira de pequenos contos, cujos autores foram omitidos. O quinto, um livro de Rex Stout, a propósito do famoso Nero Wolfe, detetive que me impressionou desde sempre, fechou o capítulo preliminar antes der “ler” as sardinhas assadas. Calcorreei os cinco. A minha vontade era navegar todos sem respirar. Claro que não vou conseguir. Não por não ter vontade, mas por falta de tempo. Todos foram fonte de inspiração e de saudade. Gosto de livros. São alimentos para uma alma que se sente cada vez mais pobre neste mundo estranho e sem sentido. Desaparecer no seu seio seria uma forma de renascer num mundo belo e sedutor.

Vivam as sardinhas, vivam os livros e, sobretudo, um bom vinho. 

A meu lado almoçavam cinco pessoas, quatro jovens e uma senhora que devia ser a “tutora”. Pela conversa depreendi que seriam estudantes de cinema. Estavam na localidade para um congresso. Dois deles tinham sotaque brasileiro. Falavam alto e não pude de deixar de acompanhar a conversa, desde os tipos de alimentos até aos cursos que frequentavam. Houve um momento em que falaram dos próximos feriados. O facto de a brasileira ter dito que o primeiro de dezembro tinha a ver com a queda da ditadura e a instauração da república obrigou-me instintivamente a entrar na conversa. Pedi licença e fiz as correções necessárias. Ouviram-me com atenção e agradeceram. O que estava mais próximo apontou para um dos livros que tinha em cima da mesa, deve ter-lhe chamado a atenção a encadernação antiga, e perguntou que livro era.  Disse-lhe que era uma coletânea de contos, editado há muitos anos no Brasil. Conversa, puxa conversa. Acabei por lhe oferecer o livro, aconselhando-o, sempre que comprasse um livro antigo a folheá-lo, porque por vezes encontramos coisas belas, como cartas, notas e outras coisas mais. Ficou de boca aberta. Mas para não ficar sozinho, também ofereci o “In illo tempore”, de Trindade Coelho, que já conhecia, à jovem brasileira, porque durante a conversa tinham falado de Coimbra e das suas praxes. Uma das meninas, a de Lamego, foi agraciada com a vida e obra do Marquês de Pombal de Camilo, enquanto a “tutora”, do Instituto Politécnico de Viseu, recebeu o livro de Aquilino que acabou por respirar ar puro ao fim de muitos anos. E assim, sabendo que não iria tempo para ler e reler estas obras, acabei por oferecer livros e divulgar a nossa literatura. Fiquei apenas com o livro policial de Rex Stout.

Ao levantar-se, o jovem luso-brasileiro, folheou o velho livro e encontrou um belo poema manuscrito. Letra feminina. Título? “Conserva o teu sorriso”. Um lindo poema que deve ter visto a luz em muitos anos. 

Ofereceu-me!

 

 

 

Um almoço vulgar…

Gozo alguns minutos da minha existência numa esplanada no alvor do outono. Não sinto frio, não sinto calor, sinto apenas saudade de um tempo que nunca existiu. Vivo mergulhado numa atmosfera simples. Consigo recordar imensas coisas ao mesmo tempo. O anoitecer prematuro, a música tranquilizadora de Glenn Miller, os sonhos de uma criança, os ruídos do sótão, temerosos ou tenebrosos, já não me recordo bem, os lençóis a cheirar a sabão azul, o medo da noite, a esperança do renascer de um novo dia, as orações a um anjo da guarda desconhecido e malandro, como é típico dos anjos, o medo da minha mãe poder descobrir o maço de cigarros, “Sagres”, escondido no armário do meu quarto. Ui! É melhor não avançar mais. São tantas as lembranças que acabam por causar ansiedade num tempo que não era meu, e nem sabia o que me iria acontecer. Mal sabia o que me estava guardado. 

Soube-me bem os filetes panados, embora tivesse de descartar as saborosas capas. Valeu-me o adocicado e saboroso vinho branco e os sorrisos delicados do pessoal.

Um almoço simples e banal para quem é banal e simples, eu.

domingo, 9 de outubro de 2022

“Cansaço” …

Há personalidades que apresentam características comuns. Quando as vejo quase que descortino o que são ou o que foram. 
Mulher magra, de meia idade, voz rouca de tabaco de longa exposição, olhos pintados a risco negro, olhar inquieto, sempre atento, não escondendo a fome de ver tudo em redor, nervosismo à flor da pele, maçãs do rosto salientes, sentou-se. Antes de lhe perguntar o que quer que fosse, debitou de imediato que sofria de um cansaço terrível, o que para ela, mulher que gostava de trabalhar, era uma grande preocupação. Consegui enfiar-me na conversa perguntando-lhe se sofria de alguma doença. Disparou que teve hepatite B e que ficou imune e depois disseram-lhe que também tinha hepatite C. - Já fez tratamento para a hepatite C? - Não! A minha médica já me falou nisso. A forma com expunha dava a entender que não teria assim nada de especial. - Olhe lá.- Atrevi-me ir direito ao assunto. - Foi consumidora de drogas proibidas? - Fui, senhor doutor. Disse com a maior naturalidade. - Mas deixei. Sem ajuda e nem tive que ir ao CAT. - E o que é tomava? - Heroína. - Ai sim? E conseguiu parar sem ajuda? - Claro. Vi que me estava a fazer mal e parei. - Sim senhora! - Quando é que começou? - Devia ter perto de trinta anos. - Então, já foi há muito tempo. Como é que se meteu nisso? - Foi o meu companheiro. Foi ele que me pegou as doenças. Mas também só andei dois a três anos nessa vida. Fazia-me mal. - E o seu companheiro? - Morreu. Mas não morreu da droga, foi morto por um cunhado que lhe espetou uma faca aqui. Apontou para a zona do fígado. - Isso aconteceu há muito tempo? - Foi naquela altura. O filho era pequeno, agora já tem trinta anos. - Claro que o assassino foi preso. - Foi, mas libertaram-no ao fim de doze ou treze anos. Ninguém sabe onde para, e ainda bem. Olhe, são coisas que acontecem. 
Depois continuou com o seu relato de vida pessoal, dizendo que teve outro filho de uma relação mais recente e que teve também de terminar. Era demasiado violento e um bebedolas. - Fartei-me de homens, sabe? Agora estou bem, o pior é este maldito cansaço. Dei cabo da minha vida por causa do amor. Acredita, senhor doutor? - Claro que acredito. - Maldita sorte a minha. Como é que estão as análises?
Tive que lhe dizer que tinha problemas no fígado e que deveria tratar-se como devia ser. Fiquei com a sensação de que desconhecia a gravidade da situação. - Ah! Então, o cansaço vem do fígado! - Sim. Tem que tratar-se como deve ser. Expliquei como deveria fazer. - Vou seguir o seu conselho. Vou mesmo. Eu gosto de trabalhar, mas este cansaço é demais, mata-me. Eu quero viver.
- Força! Viva mesmo.

sábado, 1 de outubro de 2022

Nomes e ferimentos

Conhecemos muitas pessoas através das suas obras, opiniões, conquistas, descobertas, inovações, arte e demais atividades ligadas aos seres humanos. Fabricamos as nossas opiniões acerca dos seus valores, princípios, dignidade, forma de estar e de sentir o mundo, acabando por incorporar na nossa essência parte do que são ou foram. Somos moldados por tudo o que nos rodeia. Os “outros” também fazem parte de nós.  

Conhecer não é apenas conviver ou partilhar, também é ouvir e saber o que fazem ou o que fizeram. Por vezes ficamos incrédulos quando a imagem de alguns fica manchada por algo iníquo ou horrível que fizeram. Além de perderem de imediato o seu valor e o respeito que julgávamos merecedores acabam por nos atingir e até ferir-nos. Também sofremos 

Quase que me apetece dizer que raro é o dia em que não somos confrontados com certos tipos de ferimentos ou insultos às nossas almas. Um eclesiástico, que foi inundado de honrarias ao mais alto nível mundial, passou a ser um iníquo. Um criminoso visivelmente alquebrado e sem a força de outrora, foi humilhado na sua condição humana. Alguns políticos mostram ao fim de algum tempo a qualidade das fibras de que são feitos, falsas e hediondas. Desportistas sem caráter e violadores da solidariedade e do companheirismo destroem a essência dos valores olímpicos. Os seus nomes correm a princípio como doces e felizes rios de água limpa, saciando a nossa sede e alimentando as nossas esperanças, mas alguns transformam-se em enxurradas de águas sujas e extraordinariamente violentas capazes de destruir a vida, as suas e ferindo as de outros. Também somos os que os outros são, porque fazem parte de nós. Os nomes que transportamos, mesmos que sejamos desconhecidos e sem qualquer impacto de maior, sempre transmitem alguma ideia acerca do nosso valor, nem que seja para dar algum alento à nossa autoestima, mas os dos outros, os dos “maiores”, podem causar transtornos muito graves porque roubam muito do que desejaríamos que a humanidade fosse. O quê? Já nem sei. Confesso que não acredito que alguma vez a humanidade seja o que foi prometido. Acredito apenas num breve momento em que o tempo se esquece que existe e me deixa saborear um café em paz na companhia de um cão sossegado e meigo deitado aos meus pés. Temos nomes, o dele também está incorporado na minha essência.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

O pneu ...

Na altura não havia brinquedos. Fome de brincar e cabeça para imaginar eram coisas que abundavam.
Quando os eucaliptos davam a pele, retirava uma faixa e com maestria infantil, a que não era alheia a perigosa navalha, sempre escondida dos graúdos, arranjava maneira de criar uma fantástica hélice que girava como se fosse a mais esplendorosa ventoinha. Depois era vê-la a girar à velocidade da minha corrida. Víamos quem corria mais depressa atrás daquelas belezas feitas com a pele descamada dos eucaliptos.
Correr era uma necessidade. O corpo exigia insistentemente como se a vida quisesse andar atrás de um mundo que então via mas não compreendia. Fazia-lhe a vontade correndo com um velho arco ou a jogar à bola feita com meias velhas e trapos, os quais me valeram algumas tareias, porque nem sempre tinha discernimento para distinguir o velho do novo. Coisas da vida.
O que gostava mais era de andar às corridas com os arcos. Não era fácil arranjá-los, logo, o melhor era ficar junto da oficina das bicicletas e, como não quer a coisa, ia perguntando se não havia um pneu velho para brincar.
- Não. Não há. Diziam com vozes tonitruantes, eivadas de cigarros, de algum tinto e de muita berraria.
- Não há? Estão tantos ali.
- Onde?
- Ali! Não são pneus velhos? Podia dar-me um.
- Podem ser precisos. Replicou.
- Podem ser precisos?
- Sim. Podem.
- Mas para quê?
- Olha lá, ó meu rapaz. Não vês que estamos a trabalhar e que conversa não ajuda? Pensei: - Não ajuda uma merda! Estão a sempre a conversar, de futebol, de gajas, de vinhos, de patuscadas e de muitas outras coisas.
- Queres um pneu?
- Quero pois. Disse todo entusiasmado.
- Então, antes de ires buscar um pneu tens que me dizer se já pintas. Eu bem sabia o que ele queria, mas como estava com o olho num belo pneu respondi que não, ainda era muito novo.
- Ah! Então sabes o que é pintar!
- Posso ir buscar um? Perguntei sem responder.
- Espera. Ainda tens de me dizer se já viste a “pintelheira” de alguma miúda. Farto deste tipo de conversa, ainda estive tentado a dizer que sim, que já tinha visto a da filha. O pior era o resto. Respondi:
- Não senhor. Ande lá, deixe-me ir buscar um pneu. À medida que ia falando aproximava-me do montículo sujo de borracha usada. Já tinha o “meu” pneu ao alcance da mão.
- Posso levar este? Apontei.
- Podes, mas antes tens de dizer três asneira seguidas.
- Para quê? Questionei surpreendido.
- Para quê? Para pagares o pneu.
- Pagar com asneiras?
- Sim. Nessa altura já tinha abocanhado o mais bonito de todos.
- Pronto. Está bem. Porra, catano e merda!
- Mas isso são asneiras que se digam? Isso não vale nada. Tens que dizer as de verdade.
- Está bem. Eu digo para a próxima vez. Entretanto, já ia suficientemente longe para não ouvir as gargalhadas do pessoal que assistiram ao diálogo.
Fiz uma inveja do caraças junto dos meus amigos. O pneu “novo” foi alvo de trocas e baldrocas, mas fiquei sempre com ele. Não era fácil pô-lo a andar, tinha que lhe dar muita “porrada” com o pau, mas depois engatava e eu não conseguia acompanhá-lo na descida da inclinada calçada...